22 de abril de 2007

Tesoura do Desejo


Ele

Na noite daquele sábado, iria sair com a loira pela qual já estava completamente apaixonado. Completavam-se três semanas exatas, desde o primeiro beijo, e seus sentimentos se chocavam: achava estar indo rápido demais com tão recente relacionamento, em suposto descompasso com o ritmo dela. Mas desejava mais do que tinha até aquela altura.
Se sua memória não o traia, era a terceira ou quarta vez que se encontravam desde a festa de três fins-de-semana atrás. E esse aparente descaso, que o tirava a certeza do número exato de encontros, tinha sua razão de ser: o affair havia começado totalmente sem compromisso e ganhado importância de forma assustadoramente veloz.
Na segunda semana, o casal foi ao cinema. Para sua decepção, ela prestou demasiada atenção no filme. “Quem liga para o que se passa na tela numa situação dessas?”, ele inevitavelmente pensou. Mas, como não poderia deixar de ser, o descaso da moça aumentou seu interesse por ela.
Assim, o jantar daquela noite havia ganhado importância. Ele pensou que era a ocasião ideal para comprar um presente, demonstrar que estava realmente interessado. Mas, temendo a rejeição, desistiu do mimo. Achou melhor ensaiar um discurso, em que ele cobraria dela uma posição. Queria dela tudo, ou mais nada.
Passou de carro pela porta da casa dela, para buscá-la. Seguindo um ritual implícito, trocaram um beijo assim que se viram. Mas ele não pôde deixar de perceber algo diferente, embora a penumbra do local não lhe permitisse precisar o que de estranho havia.
Conversaram amenidades a caminho do restaurante. E, ao chegar ao local, a triste e surpreendente constatação. Ela estava com madeixas mais curtas e menos loiras. Havia mudado logo aquilo que mais havia lhe chamado a atenção quando a viu pela primeira vez. Logo aquilo que ele fizera questão de elogiar nos três ou quatro encontros anteriores.
Ele tomou aquilo como um sinal. Uma senha de que entre eles não havia uma sintonia perfeita. Tentou descobrir se aquela afronta capilar havia sido intencional ou não. Mas desistiu quando concluiu que àquela altura, não haveria de fazer a mínima diferença.
Engoliu seco e insosso o jantar do restaurante que costumava adorar. Levou-a pra casa, mais por obrigação e cavalheirismo do que por vontade de fazê-lo. No caminho de volta, retumbante silêncio. Ao se despedirem, suas bocas se encontraram pela última vez.

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Ela

Na noite daquele sábado, iria sair com o cara pelo qual já estava completamente apaixonada. Completavam-se três semanas exatas, desde o primeiro beijo, e ela se sentia insegura quanto aos rumos daquele relacionamento. Muitas dúvidas, pouquíssimas certezas. Porém, algo era evidente: estava gostando de se envolver com aquele sujeito.
Sentia-se nas nuvens. Na tarde que antecedia o esperado jantar, tentou se recordar das saídas anteriores. Contabilizou quatro ou cinco, mas admitiu que seu estado inebriado poderia ser responsável por um erro de cálculo.
Lembrou da vez que haviam ido ao cinema, alguns dias atrás. Ela adorou, mas esperava dele mais iniciativa. Por vezes, pensou em esquecer do filme e se atracar com ele, mas seu pudor a impediu.
Resolveu deixar o passado de lado e pensar no futuro. Queria saber o que podia esperar daquele projeto de namoro. E teve a idéia de mudar o visual. Se ele percebesse a alteração, estaria diante de um rapaz atencioso e apaixonado. Caso contrário, ela teria ali um motivo para desacreditar na solidez da relação.
Após horas no salão de beleza, fez uma pequena pesquisa em sua casa. Pensou que se os familiares percebessem de imediato a mudança, ele também teria de fazê-lo. A mãe notou rápido e elogiou o novo corte de cabelo da filha. O pai demorou mais um pouco mas foi além, enxergando também uma leve mudança de tonalidade. O irmão mais velho não reparou nada de diferente e disse que ela tava tirando com a cara dele, enquanto o mais novo percebeu no ato e caiu na gargalhada.
A experiência com os membros da casa teve êxito. Não haveria desculpas, então, se o fato passasse batido ao rapaz. Quando o carro dele parou à sua porta, ela teve uma leve impressão de que ele observava algo em seu rosto. Mas como ele nada disse, ela se convenceu que havia sido mesmo apenas uma impressão.
Deu a ele mais tempo para que comentasse o fato. Gradativamente, ia falando menos, a fim de que o silêncio levasse a atenção do rapaz para os cabelos dela. Teve esperanças até a última garfada.
A viagem de volta foi dolorosa para ela. Pensou que se ele não podia notar um simples repaginamento visual, certamente não prestaria para entender seus problemas e anseios. Por duas vezes, pensou em gritar que ele era um babaca por não ter percebido o quanto ela estava bonita. Mas desistiu quando concluiu que àquela altura, não haveria de fazer a mínima diferença.
Ao chegar ao destino, meio que sem pensar, ela se virou e deu-lhe um beijo sem paixão. Tinha ali a certeza de que seria o último.





[Marcelo Morato.]



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É mais ou menos assim, né?

O que é pra mim, não é pra você...

O que era pra Ele, não era pra Ela... E o que era dela, ele não via... e não tinha.


Será bobagem?

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